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domingo, 13 de março de 2011

A Quaresma

Por Pe. Leonardo de Sales*

Este tempo forte para a Igreja, e, nela, para cada um de nós, é um itinerário de morte e ressurreição. É um caminho de preparação espiritual, feito para vencer a aridez da nossa existência, muitas vezes vivida como um deserto.

Este caminho quaresmal, acompanhado de gestos concretos que ajudam os fieis a se encaminharem rumo à Páscoa, nos insere na dinâmica da Igreja, comunidade de fé que busca viver e se alimentar, em cada celebração eucarística, do grande mistério de Jesus Cristo: sua paixão, morte e ressurreição.


Ao lado das práticas de piedade hebraico-cristã, fomentadas pela Palavra de Deus – a esmola, a oração e o jejum – a Igreja do Brasil busca viver um tema concreto durante a Campanha da Fraternidade, que, este ano, realiza-se de forma ecumênica: “Fraternidade e a vida no Planeta”, cujo lema é: “A criação geme em dores de parto.” (Rm 8, 22).   
A grande dimensão que está em foco no tempo quaresmal é a preparação para a Liturgia Batismal. Sepultados com Jesus Cristo, cada catecúmeno e cada fiel percorrem um caminho de morte e ressurreição. Neste caminho, experimenta-se a libertação do pecado através de uma luta contínua que é animada e alimentada pela certeza do triunfo da vida sobre a morte em Jesus Cristo.

Peregrinamos nesta vida e aguardamos a realização da beata esperança, porque a fé que brota da Páscoa é um apelo dirigido ao futuro, enraizado no passado e solidamente vivido no presente, mediante a efusão do Espírito Santo. Para além dos limites do tempo, a comunidade cristã, que se prepara para celebrar a Páscoa, vive orientada para um advir definitivo, um ponto de chegada que se alcança através de um viver concreto e orientado por Jesus Cristo Ressuscitado, nossa esperança.

A origem da quaresma

“A Páscoa, que desde o começo teve uma tão luminosa irradiação para frente, fazendo dos cinqüenta dias até Pentecostes uma única festa pascal, fez sentir o seu influxo também sobre o tempo que a precedia”, analisa o famoso liturgista Salvatore Marsili (Sinais do Mistério de Cristo, Ed. Paulinas, S. Paulo, 2009, p. 533).
Assim sendo, na 1ª metade do século IV se tem os primeiros sinais de um período pré-pascal destinado a uma preparação espiritual ao grande Mistério da Páscoa. Autores como S. Atanásio, S. Cirilo de Jerusalém e Eusébio de Cesaréia (Oriente); S. Jerônimo, S. Agostinho, S. Ambrósio e Etéria (Ocidente), escreveram a este respeito.

“Da mesma maneira que a quaresma, tempo que precede a festa da Páscoa, é símbolo dos trabalhos e sofrimentos desta vida mortal, assim os dias de alegria que seguem àquela festa são símbolo da vida futura, na qual reinaremos com o Senhor” (S. Agostinho, Sermo 243,8).

Adrien Nocent, respeitável liturgista, destaca quatro fases para o surgimento da Quaresma (in Anámnesis 6, Marietti, Genova, 1988, pp. 151-157): a) no século II havia a prática de 40 horas de jejum antes da Páscoa, estendendo-se a 3 dias; b) no século III se registra em Alexandria a prática de 1 semana de jejum; c) mais adiante, por volta da metade do século IV, surge um jejum de 4 semanas em Roma (3 + a semana pascal/a partir de Ramos); d) tornou-se inevitável a referência aos 40 dias de jejum de Cristo no deserto: “Sejam impostos aos pecadores públicos quarenta dias de jejum durante os quais Cristo jejuou...” (Pedro de Alexandria, ca. 306 d.C., Ep. Canon., cân.1). Assim veio-se a criar 40 dias de preparação (6 semanas), começando na quarta-feira (naquela época já era um dia de jejum). Na 5ª feira-santa se dava a reconciliação dos penitentes, depois de 40 dias.

Para alguns estudiosos a 1ª referência explícita de uma preparação pascal de 40 dias para todos é de Eusébio de Cesaréia, pelo ano 332 d.C.: “Antes da festa, como preparação, submetemo-nos ao exercício da quaresma, imitando o zelo dos santos Moisés e Elias” (De Sollemnitáte Pascháli 2.4.5, in Bernal OP, Jose Manuel, Iniciacion al año litúrgico, Ed. Cristiandad, Madrid, 1984, p. 171). Atanásio de Alexandria seria o autor de outra referência por volta de 334 d.C. (Carta festal 6,13).

Especificamente iniciando na Quarta-feira, encontramos uma referência em S. Máximo de Turim (ca. 465 d.C.). Nesta mesma época, o Sacramentário Gelasiano fala que os fiéis entram em retiro espiritual neste dia, chamado de cáput quadragésimae (n. 29). O costume de receber cinzas se dá a partir do século X (com o Papa Urbano II [+1099] é estendido para todos

E a palavra “Quaresma”?

Ela se encontrava no início de uma frase e passou a denominar um período do ano litúrgico: “Quadragésima die Christus pro nóbis tradétur”, que se traduz assim: “Daqui a 40 dias (no quadragésimo dia) Cristo será entregue por nós”, para a nossa salvação. Quaresma é abreviação de quadragésima. “Quadragésima” está no feminino porque, em latim, “dia” é masculino e feminino. A língua portuguesa manteve a palavra no feminino.

Quaresma é tempo de renovação. Iniciamos um tempo da delicadeza de Deus, que nos convida à experiência da conversão. Nos próximos 40 dias vamos escutar de maneira muito especial e atenta a essa Palavra de Deus para que o nosso coração se abra e viva a transformação que o amor de Deus derrama em nós pela força de sua Palavra amorosa.

O caminho quaresmal na vida da Igreja tem particular importância, porque reavivamos em nós a consciência de que precisamos de conversão. De que a nossa conduta precisa ser marcada pelos valores do Evangelho. É um tempo, pois, de Graça, supõe de nós escuta para trocarmos a nossa conduta.

O número 40...

Designa convencionalmente os anos de uma geração: 40 anos de estadia no deserto (Nm 14,34); de tranqüilidade após a libertação dos juízes (Jz 3,11. 30 etc.); de reinado de Davi (2Sm 5,4). Daí a idéia de um período bastante longo (4 x 10), cuja duração exata pode não ser conhecida: 40 dias e 40 noites para o dilúvio (Gn 7,4); a permanência de Moisés no Sinai (Ex 24,18). Contudo, os 40 dias de viagem de Elias (1Rs 19,8) e do jejum de Cristo (Mc 1,13p) repetem simbolicamente os 40 anos de Israel no deserto (Vocabulário de teologia bíblica, Vozes, Petrópolis, 1999, col. 658).

Então, quem nos ilumina de um modo especial durante estes 40 dias? Responde o Papa:

“Para empreender seriamente o caminho rumo à Páscoa e nos prepararmos para celebrar a Ressurreição do Senhor – a festa mais jubilosa e solene de todo o Ano litúrgico – o que pode haver de mais adequado do que deixar-nos conduzir pela Palavra de Deus? Por isso a Igreja, nos textos evangélicos dos domingos da Quaresma, guia-nos para um encontro particularmente intenso com o Senhor, fazendo-nos repercorrer as etapas do caminho da iniciação cristã: para os catecúmenos, na perspectiva de receber o Sacramento do renascimento, para quem é batizado, em vista de novos e decisivos passos no seguimento de Cristo e na doação total a Ele.” (Papa Bento XVI, mensagem para a Quaresma de 2011.)

É a Palavra de Deus, proclamada e acolhida diariamente pela Igreja, nos diz o Santo Padre. Faça dela o seu alimento quaresmal também, como Jesus no deserto (cf. Lc 4,4. 8.12)!

Com o seu ciclo trienal de leituras dominicais (anos A, B, C), encontramos elementos comuns e específicos a cada ano. Sempre o 1º domingo da Quaresma nos traz o relato das tentações de Jesus. No 2º domingo, a cena é a sua transfiguração. Depois os acentos são diversos: Ano A – tema do Batismo; B – Aliança; C – Penitência e reconciliação.

E as leituras semanais? Os liturgistas identificam três temas principais:
a) a conversão e o culto interior; b) o perdão divino relacionado ao nosso perdão; c) a renovação pessoal e o dom da vida, frutos da Páscoa.

Ano A – São Mateus – O itinerário litúrgico-catequético – O acento é o Batismo
 
I domingo -13 de março

“O primeiro domingo do itinerário quaresmal evidencia a nossa condição de homens nesta terra. O combate vitorioso contra as tentações, que dá início à missão de Jesus, é um convite a tomar consciência da própria fragilidade para acolher a Graça que liberta do pecado e infunde nova força em Cristo, caminho, verdade e vida (cf. Ordo Initiationis Christianae Adultorum, n. 25). É uma clara chamada a recordar como a fé cristã implica a exemplo de Jesus e em união com Ele, uma luta «contra os dominadores deste mundo tenebroso» (Ef 6, 12), no qual o diabo é ativo e não se cansa, nem sequer hoje, de tentar o homem que deseja aproximar-se do Senhor: Cristo disso sai vitorioso, para abrir também o nosso coração à esperança e guiar-nos na vitória às seduções do mal.” (Papa Bento XVI, mensagem para a Quaresma de 2011.)

II domingo -20 de março

“O Evangelho da Transfiguração do Senhor põe diante dos nossos olhos a glória de Cristo, que antecipa a ressurreição e que anuncia a divinização do homem. A comunidade cristã toma consciência de ser conduzida, como os apóstolos Pedro, Tiago e João, «em particular, a um alto monte» (Mt 17, 1), para acolher de novo em Cristo, como filhos no Filho, o dom da Graça de Deus: «Este é o Meu Filho muito amado: n’Ele pus todo o Meu enlevo. Escutai-O» (v. 5). É o convite a distanciar-se dos boatos da vida quotidiana para se imergir na presença de Deus: Ele quer transmitir-nos, todos os dias, uma Palavra que penetra nas profundezas do nosso espírito, onde discerne o bem e o mal (cf. Hb 4, 12) e reforça a vontade de seguir o Senhor.” (Papa Bento XVI, mensagem para a Quaresma de 2011.)

III domingo -27 de março

“O pedido de Jesus à Samaritana: «Dá-Me de beber» (Jo 4, 7), que é proposto na liturgia do terceiro domingo, exprime a paixão de Deus por todos os homens e quer suscitar no nosso coração o desejo do dom da «água a jorrar para a vida eterna» (v. 14): é o dom do espírito Santo, que faz dos cristãos «verdadeiros adoradores» capazes de rezar ao Pai «em espírito e verdade» (v. 23). Só esta água pode extinguir a nossa sede do bem, da verdade e da beleza! Só esta água, que nos foi doada pelo Filho, irriga os desertos da alma inquieta e insatisfeita, «enquanto não repousar em Deus», segundo as célebres palavras de Santo Agostinho.” (Papa Bento XVI, mensagem para a Quaresma de 2011.)

IV domingo - 03 de abril

“O domingo do cego de nascença apresenta Cristo como luz do mundo. O Evangelho interpela cada um de nós: «Tu crês no Filho do Homem?». «Creio, Senhor» (Jo 9, 35.38), afirma com alegria o cego de nascença, fazendo-se voz de todos os crentes. O milagre da cura é o sinal que Cristo, juntamente com a vista, quer abrir o nosso olhar interior, para que a nossa fé se torne cada vez mais profunda e possamos reconhecer n’Ele o nosso único Salvador. Ele ilumina todas as obscuridades da vida e leva o homem a viver como «filho da luz».” (Papa Bento XVI, mensagem para a Quaresma de 2011.)

V domingo -10 de abril

“Quando, no quinto domingo, nos é proclamada a ressurreição de Lázaro, somos postos diante do último mistério da nossa existência: «Eu sou a ressurreição e a vida... Crês tu isto?» (Jo 11, 25-26). Para a comunidade cristã é o momento de depor com sinceridade, juntamente com Marta, toda a esperança em Jesus de Nazaré: «Sim, Senhor, creio que Tu és o Cristo, o Filho de Deus, que havia de vir ao mundo» (v. 27). A comunhão com Cristo nesta vida prepara-nos para superar o limite da morte, para viver sem fim n’Ele. A fé na ressurreição dos mortos e a esperança da vida eterna abrem o nosso olhar para o sentido derradeiro da nossa existência: Deus criou o homem para a ressurreição e para a vida, e esta verdade doa a dimensão autêntica e definitiva à história dos homens, à sua existência pessoal e ao seu viver social, à cultura, à política, à economia. Privado da luz da fé todo o universo acaba por se fechar num sepulcro sem futuro, sem esperança.” (Papa Bento XVI, mensagem para a Quaresma de 2011.)
Assim, podemos fazer um caminho com cinco paradas:

1.    O DESERTO - As nossas tentações. Lugar de aridez, de enfrentamentos, de escassez, limites,lugar onde  nada parece florir, lugar transitório.
2.    O MONTE – Lugar da glória, das dúvidas, do comodismo, lugar do nosso futuro, a escuta aos apelos de Deus.
3.    O POÇO- A nossa sede, nossas mentiras, nossos desejos, as nossas inquietações, mistérios, infidelidades,
4.    O CAMINHO DE LUZ- As nossas cegueiras, nosso desejo de milagres, a nossa fé, os lugares obscuros de nossa vida.
5.    A CASA DE LÁZARO – A dor, os limites, o nosso limite dó, as doenças, o corpo, a auto-aceitação, as perdas, as lágrimas, o nosso odor.

Quaresma e Batismo – um vínculo particular

“Um vínculo particular liga o Batismo com a Quaresma como momento favorável para experimentar a Graça que salva. Os Padres do Concílio Vaticano II convidaram todos os Pastores da Igreja a utilizar «mais abundantemente os elementos batismais próprios da liturgia quaresmal» (Const. Sacrosanctum Concilium, 109). De fato, desde sempre a Igreja associa a Vigília Pascal à celebração do Batismo: neste Sacramento realiza-se aquele grande mistério pelo qual o homem morre para o pecado, é tornado partícipe da vida nova em Cristo Ressuscitado e recebe o mesmo Espírito de Deus que ressuscitou Jesus dos mortos (cf. Rm 8, 11). Este dom gratuito deve ser reavivado sempre em cada um de nós e a Quaresma oferece-nos um percurso análogo ao catecumenato, que para os cristãos da Igreja antiga, assim como também para os catecúmenos de hoje, é uma escola insubstituível de fé e de vida cristã: deveras eles vivem o Batismo como um ato decisivo para toda a sua existência.” (Papa Bento XVI, mensagem para a quaresma de 2011.)

O que fazer durante a quaresma?

O que a esmola prepara, a oração fortalece e o jejum confirma ou como diz São Pedro Crisólogo: “O que a oração pede, o jejum alcança e a misericórdia o recebe” (Sermo 43: PL 52,320.322 – Terça-feira da 3ª Semana da Quaresma, em Liturgia das Horas – vol. II, pp. 204-206).
Pelo jejum, o desprendimento acontece, não só do que é supérfluo, mas até mesmo do que se julga necessário, a fim de favorecer o irmão mais necessitado. Quem se dispõe a jejuar deve se dispor, igualmente, a fazer chegar à mesa do necessitado o fruto da sua renúncia. Este jejum agrada a Deus, porque está repleto de justiça social (cf. Is 58,5-6).   
Estes três gestos penitenciais aceitos como válidos por Jesus, mas por ele redimensionados quanto à sua justa prática, irão nos acompanhar ao longo do Tempo da Quaresma, pois neles reside uma boa forma de nos purificarmos e experimentarmos a conversão que toca o coração de Deus.   
Animados por estes gestos penitenciais, aproximamo-nos de Deus com um coração contrito e humilhado, tendo por certo, como rezado no Salmo 50, de encontrar a sua misericórdia, que cria em nós um coração puro e disposto para aceitar a sua salvação. O que encontramos no Salmo 50 tem muito a ver com a solene profissão de fé de Jl 2,12, que interpreta e atualiza a confissão de Ex 34,6.

Conclusão

O tempo da Quaresma é tempo de conversão para que cada um se confrontando com a Palavra Santa de Deus possa de verdade compreender sua postura e definir seus gestos e palavras na direção dos valores do Evangelho. Sobretudo, derrubar o orgulho que muitas vezes nos leva a pensar que estamos certos, quando estamos errados, que estamos sentindo, falando de maneira equivocada, quando não estamos convictos de que nós estamos na direção certa.
Ao referir-se à esmola o Senhor toca em todos nós, não se trata simplesmente de dar qualquer coisa a quem precisa, mas antes de qualquer coisa de ter coração misericordioso e capaz de perdoar, de refazer laços, de repartir aquilo que se tem, não apenas o supérfluo, mas aquilo que falta àqueles que precisam mais, e é preciso fazer isto de maneira muito humilde, o Senhor recomenda. Para dizer que essa é a nossa obrigação, é na verdade o sustento de nossa vida. Não para se mostrar naquilo que faz, mas exatamente viver a alegria de partilhar a vida. Quem partilha sua vida no que é e no que tem, cresce e dobra o que é e o que tem em valor e significação. Esmola, Jejum e Oração, marquem o caminho de nossa conduta neste tempo de conversão. Há muito que precisamos pensar refletir e viver como experiência de mudanças de nós.
Que Deus abençoe a todos neste caminho quaresmal, neste retiro de toda a Igreja!

Pe. Leonardo de Sales, batalhense, é padre da diocese de Lins, interior de São Paulo, e atualmente é mestrando em Teologia bíblica, na capital paulista.

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